domingo, 22 de dezembro de 2013

A conexão da música com a desconexão da Palavra

Li um artigo escrito por um amigo,[i] e para poupar espaço em sua página, vou tecer alguns comentários por aqui. Ele escreveu sobre a relação entre a música contemporânea de adoração, o culto e a pregação.  Para o autor, a atual música, que busca uma “conexão” com Deus, marca um período de desconexão da Palavra. Concordo com a questão da desconexão da Palavra, mas discordo do papel atribuído à música nesse processo. Eis minhas razões:

A música contemporânea e a mudança na liturgia
É fácil perceber que a desconexão com a Palavra ocorre com ou sem música “conectante”.
O liberalismo teológico nasceu em igrejas litúrgicas, tradicionais, sem música “conectante”. A neo-ortodoxia, nasceu em igrejas reformadas, tradicionais, históricas, sem música “conectante”. Ambos os movimentos esvaziaram a Bíblia de autoridade, desconectaram pessoas da Bíblia do modo mais perigoso.


Veja que curioso: muitos segmentos católicos, luteranos e reformados se renderam ao liberalismo teológico e à neo-ortodoxia. Mas a liturgia nessas denominações se mantém geralmente intocada. Manter a liturgia não impediu a mudança na teologia da revelação, e consequentemente, no púlpito. O estilo musical do culto continua o mesmo, mas a teologia se desconectou da Palavra.

A história da IASD mostra que mudar a liturgia e o estilo musical não é necessariamente problema. E a história das denominações em geral mostra que manter a liturgia e o estilo musical não garante a boa teologia. Em nossa própria história podemos encontrar períodos sérios de desconexão da Palavra, e isso nada teve a ver com música.[ii] Para uma análise dessa mudanças pela Dra. Lilliane Doukhan, clique aqui

A música contemporânea e os sermões fracos
Segundo o autor, as canções contemporâneas mudaram a pregação: os sermões são rasos, e o auditório não se interessa por sermões mais “profundos”. Mas a impaciência dos jovens com os sermões não é culpa da música. A mudança no perfil do adorador tem várias causas. É uma mudança no perfil de uma geração. Jogar isso na conta da música contemporânea de adoração é equivocado.[iii]

Além disso, em geral, nossos pregadores não seguem as orientações inspiradas sobre a arte de pregar. Sermões longos, áridos, complicados, não são apenas inadequados à geração Y, mas estão na contramão do que Ellen White recomenda.[iv]

Concordo que há uma crise no púlpito adventista, mas não foi a música quem provocou, e não é a música que vai consertar isso.


A música contemporânea e o “analfabetismo bíblico”
Sempre achei que descrever os adventistas como “o povo da Bíblia” é, no mínimo, um exagero triunfalista. Existem centenas de denominações que reivindicam esse título da mesma forma como o fazemos. Sempre tivemos nossas dificuldades com relação ao estudo da Bíblia. O analfabetismo bíblico não é fenômeno recente no adventismo. Ellen White já alertava sobre isso nos dias dela.[v] Basta verificar nossa história e constatar o grande número de heresias e movimentos dissidentes com ideias estapafúrdias que levaram centenas de adventistas à apostasia.

Jogar o analfabetismo bíblico na conta da música contemporânea e do púlpito também é um erro (além de uma inversão na relação causa-efeito). Não se deve esperar que a igreja seja alimentada biblicamente apenas pelo púlpito ou pela música. Se o povo não estuda a Bíblia por si, não há sermão ou louvor que resolva isso!

O analfabetismo bíblico é raiz dessa árvore, não fruto. É causa, não conseqüência do problema. É a própria doença, e não apenas um sintoma dela.

A música contemporânea e a religião da “sensação”
Suponhamos que a emoção seja, de fato, um problema na adoração.[vi] De acordo com o autor, a “postura de adoração orientada por um perfil carismático chegou a nós por meio do worship.” E tal postura “dispensa a profundidade do estudo da Bíblia como fundamento da adoração, dando espaço a experiências pessoais e legitimando o sentimento como meio de conecção [sic] com o sagrado.”

O problema desse argumento é que o desprezo à Bíblia e à revelação objetiva historicamente não são culpa da música contemporânea e nem do carismatismo. Existem tantos outros movimentos teológicos que valorizam a experiência e não são carismáticos e nem tem nada a ver com o “worship”.

A valorização da experiência pessoal vem de longe, no mínimo desde os pietistas, passando pelos metodistas, os reavivalistas, o movimento “Holiness”, os campmeetings, etc. O adventismo nasceu em berço metodista, imerso numa cultura de campmeetings, “Holiness” e “revivals”. Nosso hinário traz hinos de Zinzendorf e Neumeister, que eram pietistas, da religião do coração, experiencial, subjetiva.

Continuamos cantando hinos metodistas, do Exército da Salvação, “Holiness” e dos reavivamentos que levaram o pentecostalismo. Continuamos cantando hinos dos campmeetings reavivalistas (mesmo sabendo que eles caíam no chão, pulavam, choravam). Você acha que devemos parar de cantar hinos de Andrae Crouch (pentecostal)? E de John Wimber, fundador da Vineyard? E os negro spirituals? É tanto hino de gente que curtia as sensações, que podemos dizer que o hinário é “sensacional”.

Ou seja: estamos há séculos ligados, através dos hinos, à religião das sensações, e nosso hinário mostra isso. Por isso, é errado jogar a culpa da religião sensacional no “worship”, na música contemporânea. Aí estão as igrejas pentecostais tradicionais para mostrar que os hinos também pavimentam o caminho das “sensações”.[vii]


O carismatismo não é uma novidade, fruto do “worship”. Na realidade, o adventismo já nasceu enfrentando ondas de fanatismo carismático. O fanatismo de Indiana aconteceu ao som de hinos que cantamos até hoje. Basta verificar o “Garden of Spices”[viii] (hinário usado na campal de Indiana). Novamente, um bom repertório não foi suficiente para evitar distorções teológicas.[ix]

“Boa” música e má teologia
Se evitássemos a música contemporânea e o “worship”, estaríamos seguros, certo? Existe uma relação direta entre música tradicional e teologia correta, certo? Errado.

Pense:  qual era a característica musical do culto romano durante os 1260 anos de supremacia? Era música “boa”, mas péssima teologia! Veja a descrição do culto romano no Grande Conflito, p. 566.

Qual era a característica musical dos cultos do escolasticismo protestante? Excelente música (pelo menos no luteranismo), culto digno e sóbrio, mas a teologia era caracterizada pelo dogmatismo, péssima hermenêutica e submissão da Bíblia às pressuposições humanas.

Qual era a característica musical da pregação legalista que dominou o adventismo antes de 1888? Tradicional, ortodoxa, mas a teologia era equivocada.

Qual era a música que acompanhava os movimentos fanáticos dos dias de Ellen White? Diversificada. Havia fanatismo e heresia com música, sem música, ao piano, com banda ruidosa, sem banda ruidosa, etc. Ex.: o caso dos Mackin, a campal de Indiana[x] e outros. Não existe uma fórmula musical para a heresia. O fanatismo é diversificado, e se manifesta “em diferentes maneiras”.[xi]


Sejamos bíblicos
Apesar de minha discordância, penso que o pastor Douglas chama atenção para um problema real: o esvaziamento da autoridade da Bíblia como princípio regulador do culto. Meu apelo é que voltemos à Bíblia nesse assunto. Já há muita história, psicologia, sociologia, antropologia, musicologia envolvida nessas discussões. Muito do que se supõe ser matéria bíblica é apenas opinião costurada com textos-prova arrancados a fórceps da Bíblia. Devemos nos voltar à Bíblia, deixar que ela fale naturalmente, e por ela medir nosso culto, nossa liturgia, nossa música, nossa adoração e nosso púlpito.


Isaac Malheiros Meira

[ii] Ver por exemplo, George Knight, A mensagem de 1888 (Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2009). A ortodoxia adventista, o apego à tradição, nesse período levou a uma desconexão da Palavra.
[iii] O autor escreveu um livro sobre a “geração Y” e sabe que essa impaciência, desatenção e dificuldade de se concentrar da atual geração não se deve à música de adoração.
[v] “O temor do Senhor está-se extinguindo no espírito de nossos jovens, devido à sua negligência de estudar a Bíblia.” Ellen White, Conselho aos Pais, professores e estudantes, p. 89.
[vi] Não penso que seja. Basta uma olhada nos salmos e seus profundos tons emocionais para perceber que a Bíblia não vê os sentimentos humanos como prejudiciais na adoração. Os salmos vão além, e expressam emoções que eu nunca vi em músicas de worship, como o Sl 137:9. Se usássemos os critérios de alguns críticos da música contemporânea, os Salmos seriam classificados como “existencialistas” e “emocionalistas”.
[vii] A Congregação Cristã do Brasil, pentecostal, é notável por valorizar os hinos tradicionais e a música instrumental de orquestra. As cruzadas de curas e milagres de Benny Hinn, famoso pregador pentecostal, ocorrem geralmente ao som de música evangélica tradicional, com órgão e coral.
[viii] Para uma análise do conteúdo do “Garden of Spices”, ver http://www.adoracaoadventista.com/2013/03/o-problema-nao-foi-o-repertorio.html
[xi] Sobre isso, leia “Fanatismo em diferentes maneiras” em http://www.adoracaoadventista.com/2011/12/fanatismo-em-diferentes-maneiras.html

4 comentários:

  1. Ótimo artigo. Veio em boa hora. Que Deus lhe abençoe!

    ResponderExcluir
  2. Sabe que esta brm cansativa essa disputa que vem acontecendo em nossas igrejas, argumentos tendenciosos, textos manipulados.... aonde isso vai parar eu nao sei, mas esse pastor disse uma coisa que ate agora foi o que mais me irritou,disse que aqueles adventistas que questionam tudo e querem achar diferente dele estao rejeitando a voz do espirito santo de deus.... olha o meu relacionamento com meu Pai vai muito bem,obrigada, e eu acho que esse tipo de afirmação nao vem do espirito santo de Deus.... desculpa o desabafo aqui, e que se eu postar isso no site do tal pr com certeza terei muito mais motivos para chateação, com certeza.... oro muito pra que Deus oriente pessoalmente as suas ovelhas pois o que vejo na maioria são guias cegos, mas cega eu não sou.....

    ResponderExcluir
  3. Ok. Vi o artigo que diz que a coletânea metodista Garden of Spice continha 347 "hinos" e dentre eles 45 hinos "conservadores" que estão em nosso hinário e que cantamos normalmente (Ex.: Ó cristãos avante). Mas pergunto: e os outros 302 hinos? Não seriam as músicas dançantes em letras sagradas relatadas pela Sra. Haskell na carta à Sra Sara McEnterfer?

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Basta ver o hinário e conferir o repertório. Ele pode ser encontrado na net em pdf. O problema não foi o repertório. É possível fazer música dançante inclusive com os 45 hinos que entraram em nosso hinário.

      Excluir