terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

"Cristãos em busca do êxtase" e a música - 2


6) Dorneles usa o templo judaico como normativo para o culto cristão
Ele escreveu:

“O estudo dos textos bíblicos que citam os instrumentos musicais esclarece que o tambor não fazia parte da música do templo, por orientação do próprio Deus a Davi.”

Por orientação do próprio Deus, não entravam no templo várias outras coisas: mulheres, crianças, estrangeiros, aleijados, etc. A pergunta que devemos responder é: o templo é o nosso modelo de culto e música cristãos? Dorneles acha que sim:

“Uma vez que o templo de Israel era uma representação do santuário celestial e do trono de Deus, a música na igreja hoje deve ter sua referência maior na música usada nesse templo.”

Já é bem comum o argumento “se não tinha no templo de Jerusalém, não podemos usar na igreja”. Na realidade, ao mirar na percussão, esse argumento atinge quase todos os instrumentos atuais.

O palestrante Daniel Spencer resume essa teoria, dizendo que “nosso Templos são cópias das igrejas primitivas, cópias das sinagogas, cópias do templo de Salomão, cópia do santuário, cópia do santuário do céu.” Mas isso também não é verdade e uma simples comparação do propósito e da liturgia do templo judaico com o culto cristão revela o equívoco.

Nosso culto não tem muita coisa a ver com o modelo de culto primitivo (nas casas). O culto da igreja primitiva até se assemelhava em certos aspectos às reuniões da sinagoga. Mas a sinagoga e o templo apresentam profundas e marcantes diferenças entre si. A começar pela principal atividade do templo: o sacrifício. Além disso, em vários aspectos a sinagoga não tem absolutamente nada a ver com o templo (participação de leigos, mulheres, gentios, leitura e explicação da Palavra, etc).

Bastaria um exemplo pra expor o equívoco desse argumento: Não havia pregação no templo, e nosso culto hoje é centralizado na pregação.

O ministério levítico, inclusive o musical, era cerimonial, conectado aos sacrifícios e ofertas, E remunerado. Não é um modelo a ser estritamente seguido, mas dele podemos extrair princípios. O próprio Bacchiocchi, que já defendia muitas dessas idéias agora expostas por Dorneles, menciona esse caráter cerimonial da música do templo em:

“O livro de Crônicas apresenta o ministério musical dos levitas como parte da apresentação da oferta diária no templo." (O cristão e a música rock, 205)

Nos textos onde cita o templo judaico, Ellen White não traça paralelos literais com a igreja. Ela extrai princípios de adoração e não listas inflexíveis de instrumentos. “Da santidade atribuída ao santuário terrestre, os cristãos devem aprender como considerar o lugar onde o Senhor Se propõe encontrar-Se com Seu povo" (Testemunhos Seletos, vol. 2, 193). Nesse texto, ela usa a santidade do templo para extrair um princípio para o culto cristão: a reverência.

7) Dorneles usa a regra do “não Está Escrito aqui, então está proibido”
Dorneles transforma uma lista de instrumentos que não inclui os tambores numa “proibição” aos tambores. A ausência dos tambores na lista de instrumentos do templo é entendida como uma proibição divina aos mesmos. No entanto, isso é um desrespeito ao princípio reformado “tota scriptura” de interpretação, já que os salmos claramente incentivam o uso de tambores.

Não existe em parte alguma da Bíblia a proibição “não usem tambores”. É uma proibição inferida, imaginada a partir da tal lista. Mas existem vários textos com o incentivo “usem tambores” no próprio hinário do Templo (Salmos)! Assim, textos claros deveriam ter a precedência sobre textos obscuros. Não há nenhuma explicação para essa lista ter prioridade sobre os outros inúmeros textos claros.

E Dorneles fica devendo uma explicação sobre que tipo de raciocínio ele utilizou para conseguir igualar uma “não menção” a uma "proibição". Os guardadores do domingo amariam essa explicação: eles insistem que a “não menção” ao mandamento do sábado no Novo Testamento representa uma invalidação do mesmo. Estaria Dorneles vendo inteligência nesse horroroso argumento anti-sábado?

Dorneles escreveu posteriormente: “E isso fica tão claro para Israel que ao longo de mais de 500 anos, a lista é repetida em diversos textos (I Crônicas 15:16, 19-24, 28, 16:5, 42, 23:5, 25:1, 6, II Crônicas 5:12-13, 29:25-27, Neemias 12:27, Isaías 39:20). A lista é consistente, não havendo qualquer relevante alteração entre os textos.”

Vamos analisar essas tais listas :
1 Cr 15:16 - alaúde, harpa, címbalo. Aqui Deus “proibiu” a trombeta e o shofar.
1 Cr 15:19-24 - alaúde, harpa, címbalo, trombeta. Aqui Deus “proibiu” só o shofar.
1 Cr 15:28 – shofar, alaúde, harpa, címbalo, trombeta. Aqui, meio indeciso, Deus permitiu a volta da trombeta e do shofar.
1 Cr 16:5 – alaúde, harpa, címbalo. Após ter permitido, Deus muda de idéia e “proíbe” a trombeta e o shofar novamente.
1 Cr 16:42 – trombeta, címbalo e kliy shiyr (outros instrumentos musicais). Se o v.5 e o v.42 representam uma lista só, menciona “outros instrumentos” além desses, e a lista não é consustente. Se são duas listas, elas não seguem um padrão, por isso também não é consistente.
1 Cr 23:5 – não lista instrumentos específicos.
1 Cr 25:1 – alaúde, harpa, címbalo. Deus “proibiu” a trombeta e o shofar.
1 Cr 25:6 - alaúde, harpa, címbalo. Deus “proibiu” a trombeta e o shofar.
2 Cr 5:12-13 - alaúde, harpa, címbalo, trombeta e kliy shiyr (outros instrumentos musicais). Mais uma vez, a lista não segue um padrão consistente e inclui “outros instrumentos”.
2 Cr 29:25-27 - alaúde, harpa, címbalo, trombeta. Deus “proibiu” só o shofar.
Ne 12:27 – alaúde, harpa, címbalo. Deus “proibiu” a trombeta e o shofar.
Is 39:20 – não existe esse texto
Acrescentamos:
2 Cr 20:28 - alaúde, harpa, trombeta. Deus “proibiu” o címbalo e o shofar.
Ed 3:10 - címbalo e trombeta. Aqui, Deus “proibiu” o alaúde, harpa e o shofar.

Ao contrário do que Dorneles afirma, a lista não é tão consistente e há sim relevantes alterações entre os textos. Se a teoria do “não está escrito, então está proibido” estiver correta, ela mostra que Deus estava indeciso e não sabia se queria mesmo autorizar ou proibir, afinal..

E se consultássemos os especialistas (salmistas)? A citação de instrumentos na adoração nos Salmos é riquíssima:

Trombetas (Sl 98:6), Shofar (Sl 98:6), Harpa (Sl 43:4; 98:5), Percussão (Sl 81:2; 149:3), Flauta (título do Salmo 5), Alaúde (Sl 71:22), etc.

Se houve de fato uma “proibição” divina ao uso de instrumentos, os salmistas aparentemente desconheciam ou a desobedeceram, pois incentivam o uso de uma gama enorme de instrumentos. É mais correto pensar que tal “proibição divina” a instrumentos de percussão nunca existiu.

Continua...

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