quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

"Cristãos em busca do êxtase" e a música - 4



12) A discussão "dentro do templo x fora do templo"
A questão “Dentro x Fora do Templo” aparece no livro e nos artigos de Dorneles disponibilizados na net. O argumento é: "os hebreus até usavam tambores em momentos de adoração, mas fora do templo, por isso não devemos usá-los dentro das igrejas. Tambores não entraram no templo e não devem entrar na igreja!"

Creio que esse argumento merece ser analisado mais criticamente. Não adoramos no Templo e, incrivelmente, nem temos o Templo como nosso modelo de práticas de culto. Qualquer culto cristão, seja ele feito num prédio ou debaixo de uma árvore, é “fora do templo”. Casas cristãs de culto não são “templos judaicos”.

Nossas casas de culto, que chamamos de “igreja”, não são “o Templo de hoje”. E nossa liturgia tem pouco a ver com a liturgia do Templo (com exceção dos princípios).

Muitas coisas deixaram de entrar no serviço do Templo [crianças, mulheres, gentios] mas nem por isso sua ausência deve servir de "padrão" para hoje. Por que então se singulariza a suposta ausência dos tambores e se omite a confirmada ausência de outros elementos?

Qual o princípio por trás da ausência das crianças no serviço do Primeiro Templo, por exemplo? Aplicando-se o método de interpretação de Dorneles, deveríamos deixar as crianças fora da igreja, pois não entravam no templo.

Isso mostra que o raciocínio "se tambores não entraram no templo judaico, não devem entrar na igreja" é discutível, pois a estreita comparação "templo-igreja" é discutível. O que mais não entrava no templo judaico? Eu não poderia entrar, por ser mulher. E provavelmente você, leitor, também não, por ser gentio.

Uma vez, Paulo foi condenado pelos judeus sob a falsa acusação de ter levado um efésio chamado Trófimo para dentro do templo, além do espaço permitido aos gentios (At 21:28,29).

28 "- clamando: Varões israelitas, acudi; este é o homem que por toda parte ensina a todos contra o povo, contra a lei, e contra este lugar; e ainda, além disso, introduziu gregos no templo, e tem profanado este santo lugar.
29 - Porque tinham visto com ele na cidade a Trófimo de Éfeso, e pensavam que Paulo o introduzira no templo."

Se Dorneles estivesse certo, o discurso dos judeus seria aplicável até hoje, e cenas como essa deveriam se repetir a cada sábado nos “templos”.

Outro problema é que a adoração bíblica não se restringia ao que acontecia no Templo. Apesar de ser o centro de adoração por excelência, o templo não representava toda a experiência de adoração do povo de Israel. O que se fazia no Templo tinha sua função, mas fora do Templo o povo adorava a Deus em cultos genuínos, com vários instrumentos e sob a aprovação divina.

Ellen White classifica como “culto” e “louvor” várias cenas de adoração fora do templo. Ela chama de “culto”, por exemplo, a música feita pelos profetas (ao ar livre) em 1 Sm 10:5 (Patriarcas e Profetas, 610).

E a ironia é: o transporte da arca, o evento que marcou a suposta "reforma musical", aconteceu ao ar livre! Assim, a discussão "dentro x fora do templo" perde muito o seu sentido.

Conclusão
O livro "Cristãos em busca do êxtase" é um excelente levantamento histórico do carismatismo e do pentecostalismo. Também faz uma ótima análise do papel da música nesse processo. No entanto, ao usar a Bíblia para analisar a música sacra, o autor apenas fez eco a argumentos usados contra a música contemporânea já fartamente refutados.

É hora de levarmos a discussão sobre música e adoração a um outro nível, mais alto, mais comprometido com a Bíblia. Grande parte das publicações sobre música começam afirmando que isso não é uma “questão de gosto”, que devemos saber a “vontade de Deus”. No entanto, após essa introdução bem-intencionada, os autores passam a expor suas opiniões pessoais costuradas com versos citados pela metade, descontextualizados, mal compreendidos e mal aplicados.

É incrível como a discussão sobre música parece ocorrer numa dimensão paralela, num universo onde a exegese é tosca, ilógica e a Bíblia é pisoteada. Ao adentrar nessa discussão, precisamos manter o mesmo nível, seguir as mesmas regras de interpretação bíblica que usamos em outros assuntos. Infelizmente, os artigos de Dorneles (um deles é parte de um capítulo de seu livro) não contribuíram para isso.

"Cristãos em busca do êxtase" e a música - 3


8) Dorneles usa o argumento “os salmistas ainda não tinha luz”
Para confirmar e esclarecer as teorias de seu livro, Dorneles lançou um artigo chamado "O canto do Senhor". Nele, ele escreve sobre o Salmo 150:

“quando fala de como louvar, Davi naturalmente expressa a compreensão do louvor a Deus daquela fase de sua vida. A experiência do templo agregou mais luz a essa compreensão.”

Dorneles supõe que ao incentivar o uso de tambores, Davi ainda não tinha luz (conhecimento revelado) sobre o assunto. Dorneles não faz essa suposição baseado na Bíblia, mas num salmo apócrifo (veja próximo tópico).

Não cremos em inspiração verbal, mas acontece que essa proposta de Dorneles é semelhante à dos que adotam o método histórico-crítico de interpretação bíblica. Quer dizer que os compiladores dos Salmos não foram dirigidos pelo Espírito Santo, compilando para todas as gerações posteriores algo que apóia o que Deus supostamente já havia proibido? Os compiladores posteriores dos Salmos não repararam na letra dos Salmos “sem luz” que incentivam o uso da percussão?

Um outro autor, Gilberto Theiss, escreveu sobre o Salmo 150: “provavelmente, tenha sido escrito em um momento histórico da vida de Israel onde não havia ainda uma clara instrução divina acerca da forma apropriada para a adoração litúrgica”.

Isso é grave, pois uma afirmação desse porte está á beira de negar a inspiração plenária das Escrituras. Em quais partes dos Salmos ou da Bíblia como um todo poderíamos confiar, então? Não há nenhuma indicação bíblica de que o argumento da “falta de luz” seja verdadeiro. Há bastante instrução litúrgica na Torah. O autor do Salmo 150, bem como do 149, do 81, etc foram divinamente inspirados e não houve nenhuma correção posterior ou contradição do que eles escreveram sobre percussão.

Concordando com Dorneles, Gilberto Theiss, escreveu: “No tocante à adoração musical, o povo progressivamente foi abandonando os velhos costumes egípcios. Entre esses costumes que foram abandonados, destacamos as danças e o uso de tambores.”

A Escola dos Profetas (onde os alunos usavam percussão), os Salmos e textos bíblicos e rabínicos que falam claramente da percussão e da dança em celebrações religiosas refutam isso. Os hebreus usavam percussão e continuam usando. Os hebreus dançavam e os judeus modernos continuam dançando. Não precisamos distorcer textos e reescrever fatos históricos apenas para combatermos a dança. Existem outros argumentos para isso.

Além disso, o argumento da “falta de luz” também atinge as Escolas de Profetas. Deus criou uma instituição que ensinava música sacra com tambores. Talvez, o próprio Deus não tivesse luz sobre a música ideal ainda... Um pensamento absurdo.

O argumento da “falta de luz” gera um blackout...

9) Dorneles confundiu o Salmo 150 com o Salmo 151 (apócrifo)
Para dar força ao argumento da “falta de luz”, Dorneles comete uma gafe incrível no artigo “O canto do Senhor”. Para comprovar que o incentivo ao uso de tambores do Salmo 150 foi escrito antes da tal “reforma musical” de Davi, ele cita um comentário a respeito de um salmo que não existe na Bíblia!

Ele diz:
“Entre outras fontes de especialistas, a publicação The Septuagint Version (Zondervan: Grand Rapids, MI), diz que o Salmo 150 é “um salmo genuíno de Davi, composto quando ele venceu o combate com Golias”. Nesse caso, quando fala de como louvar, Davi naturalmente expressa a compreensão do louvor a Deus daquela fase de sua vida. A experiência do templo agregou mais luz a essa compreensão.”

Antes de tudo, seria importante saber quais são essas “outras fontes de especialistas”. Suspeito que isso seja apenas um recurso retórico para dar um falso peso acadêmico à bobagem que vem logo depois: a citação do apócrifo Salmo 151, presente na Septuaginta, que nada tem a ver com o Salmo 150.

Dorneles usa a versão Septuaginta para afirmar que o Salmo 150 é “um salmo genuíno de Davi, composto quando ele venceu o combate com Golias”, mas a Septuaginta traz isso no Salmo 151 (nao-inspirado) e não no 150.

Para ler o Salmo 151 on-line:
Em grego: http://www.septuagint.org/LXX/Psalms/151
Em inglês: http://ecmarsh.com/lxx/Psalms/index.htm

O que tem a ver um Salmo com o outro? Nada. Um é apócrifo, o outro é inspirado. Um traz informações sobre a data de sua composição, o outro não. Claramente Dorneles não percebeu que estava analisando o salmo errado. Até agora não encontramos nenhum esclarecimento ou errata de sua parte. Enquanto isso, o equívoco se alastra pela internet.

(O site Advir retirou o texto do ar, e o site musicaeadoracao apenas suprimiu esse trecho, mas manteve a argumentação sem divulgar nota esclarecedora)

10) Dorneles coloca os salmistas em desobediência
“Naquele dia, foi que Davi encarregou, pela primeira vez, a Asafe e a seus irmãos de celebrarem com hinos ao Senhor” (1Cr 16:7).

Asafe, que participou do transporte da arca e assumiu a liderança da música após isso, escreveu: “Comecem o louvor, façam ressoar o tamborim, toquem a lira e a harpa melodiosa." (Sl 81:2)

Asafe, um grande mestre da música em Israel, desconhecia a tal “reforma musical” que supostamente teria proibido os tambores. E é difícil conciliar a argumentação de Dorneles com o título do Salmo 5: “Ao mestre de canto, para flautas. Salmo de Davi.”

O compositor deveria acrescentar ao título: “eu não tinha luz quando fiz isso”, já que o acompanhamento deveria ser com flautas. No mínimo, os compiladores deveriam ter tomado alguma providência.

11) Dorneles usa a falácia da “falsa analogia”
Ele compara o uso de instrumentos musicais a costumes inadequados, como o uso de bebida forte, a poligamia e a escravidão:

“Da mesma forma que a revelação posterior, corroborada por estudo e reflexão, iluminou esses fatos que aos poucos foram sendo eliminados, a questão da música também deve ser objeto de estudo para compreensão e juízo acertados.”

A sutileza do erro aqui consiste em comparar coisas incomparáveis. Os costumes inadequados citados foram claramente corrigidos pelo Senhor. Através de claros preceitos e exemplos, vemos claramente Deus corrigindo as questões da bebida forte, da poligamia e da escravidão (essa, mais sutilmente). Para cada uma dessas práticas errôneas, temos um “Assim diz o Senhor” em sentido contrário.

Isso não acontece com a música como Dorneles acha que aconteceu: uma reforma musical divinamente instruída que baniu instrumentos da adoração e que seria aplicável ainda hoje. Dorneles compara correções claramente presentes na Bíblia com uma suposta correção imaginada.

Onde está essa "revelação posterior, corroborada por estudo e reflexão" no caso da música?
No mínimo, deveria ficar biblicamente evidenciado que a ordem bíblica contrária aos tambores é tão clara e direta quanto a ordem bíblica contrária à bebida forte ou à poligamia. Do contrário, incorre-se aí na falácia da falsa analogia.

Continua...

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

"Cristãos em busca do êxtase" e a música - 2


6) Dorneles usa o templo judaico como normativo para o culto cristão
Ele escreveu:

“O estudo dos textos bíblicos que citam os instrumentos musicais esclarece que o tambor não fazia parte da música do templo, por orientação do próprio Deus a Davi.”

Por orientação do próprio Deus, não entravam no templo várias outras coisas: mulheres, crianças, estrangeiros, aleijados, etc. A pergunta que devemos responder é: o templo é o nosso modelo de culto e música cristãos? Dorneles acha que sim:

“Uma vez que o templo de Israel era uma representação do santuário celestial e do trono de Deus, a música na igreja hoje deve ter sua referência maior na música usada nesse templo.”

Já é bem comum o argumento “se não tinha no templo de Jerusalém, não podemos usar na igreja”. Na realidade, ao mirar na percussão, esse argumento atinge quase todos os instrumentos atuais.

O palestrante Daniel Spencer resume essa teoria, dizendo que “nosso Templos são cópias das igrejas primitivas, cópias das sinagogas, cópias do templo de Salomão, cópia do santuário, cópia do santuário do céu.” Mas isso também não é verdade e uma simples comparação do propósito e da liturgia do templo judaico com o culto cristão revela o equívoco.

Nosso culto não tem muita coisa a ver com o modelo de culto primitivo (nas casas). O culto da igreja primitiva até se assemelhava em certos aspectos às reuniões da sinagoga. Mas a sinagoga e o templo apresentam profundas e marcantes diferenças entre si. A começar pela principal atividade do templo: o sacrifício. Além disso, em vários aspectos a sinagoga não tem absolutamente nada a ver com o templo (participação de leigos, mulheres, gentios, leitura e explicação da Palavra, etc).

Bastaria um exemplo pra expor o equívoco desse argumento: Não havia pregação no templo, e nosso culto hoje é centralizado na pregação.

O ministério levítico, inclusive o musical, era cerimonial, conectado aos sacrifícios e ofertas, E remunerado. Não é um modelo a ser estritamente seguido, mas dele podemos extrair princípios. O próprio Bacchiocchi, que já defendia muitas dessas idéias agora expostas por Dorneles, menciona esse caráter cerimonial da música do templo em:

“O livro de Crônicas apresenta o ministério musical dos levitas como parte da apresentação da oferta diária no templo." (O cristão e a música rock, 205)

Nos textos onde cita o templo judaico, Ellen White não traça paralelos literais com a igreja. Ela extrai princípios de adoração e não listas inflexíveis de instrumentos. “Da santidade atribuída ao santuário terrestre, os cristãos devem aprender como considerar o lugar onde o Senhor Se propõe encontrar-Se com Seu povo" (Testemunhos Seletos, vol. 2, 193). Nesse texto, ela usa a santidade do templo para extrair um princípio para o culto cristão: a reverência.

7) Dorneles usa a regra do “não Está Escrito aqui, então está proibido”
Dorneles transforma uma lista de instrumentos que não inclui os tambores numa “proibição” aos tambores. A ausência dos tambores na lista de instrumentos do templo é entendida como uma proibição divina aos mesmos. No entanto, isso é um desrespeito ao princípio reformado “tota scriptura” de interpretação, já que os salmos claramente incentivam o uso de tambores.

Não existe em parte alguma da Bíblia a proibição “não usem tambores”. É uma proibição inferida, imaginada a partir da tal lista. Mas existem vários textos com o incentivo “usem tambores” no próprio hinário do Templo (Salmos)! Assim, textos claros deveriam ter a precedência sobre textos obscuros. Não há nenhuma explicação para essa lista ter prioridade sobre os outros inúmeros textos claros.

E Dorneles fica devendo uma explicação sobre que tipo de raciocínio ele utilizou para conseguir igualar uma “não menção” a uma "proibição". Os guardadores do domingo amariam essa explicação: eles insistem que a “não menção” ao mandamento do sábado no Novo Testamento representa uma invalidação do mesmo. Estaria Dorneles vendo inteligência nesse horroroso argumento anti-sábado?

Dorneles escreveu posteriormente: “E isso fica tão claro para Israel que ao longo de mais de 500 anos, a lista é repetida em diversos textos (I Crônicas 15:16, 19-24, 28, 16:5, 42, 23:5, 25:1, 6, II Crônicas 5:12-13, 29:25-27, Neemias 12:27, Isaías 39:20). A lista é consistente, não havendo qualquer relevante alteração entre os textos.”

Vamos analisar essas tais listas :
1 Cr 15:16 - alaúde, harpa, címbalo. Aqui Deus “proibiu” a trombeta e o shofar.
1 Cr 15:19-24 - alaúde, harpa, címbalo, trombeta. Aqui Deus “proibiu” só o shofar.
1 Cr 15:28 – shofar, alaúde, harpa, címbalo, trombeta. Aqui, meio indeciso, Deus permitiu a volta da trombeta e do shofar.
1 Cr 16:5 – alaúde, harpa, címbalo. Após ter permitido, Deus muda de idéia e “proíbe” a trombeta e o shofar novamente.
1 Cr 16:42 – trombeta, címbalo e kliy shiyr (outros instrumentos musicais). Se o v.5 e o v.42 representam uma lista só, menciona “outros instrumentos” além desses, e a lista não é consustente. Se são duas listas, elas não seguem um padrão, por isso também não é consistente.
1 Cr 23:5 – não lista instrumentos específicos.
1 Cr 25:1 – alaúde, harpa, címbalo. Deus “proibiu” a trombeta e o shofar.
1 Cr 25:6 - alaúde, harpa, címbalo. Deus “proibiu” a trombeta e o shofar.
2 Cr 5:12-13 - alaúde, harpa, címbalo, trombeta e kliy shiyr (outros instrumentos musicais). Mais uma vez, a lista não segue um padrão consistente e inclui “outros instrumentos”.
2 Cr 29:25-27 - alaúde, harpa, címbalo, trombeta. Deus “proibiu” só o shofar.
Ne 12:27 – alaúde, harpa, címbalo. Deus “proibiu” a trombeta e o shofar.
Is 39:20 – não existe esse texto
Acrescentamos:
2 Cr 20:28 - alaúde, harpa, trombeta. Deus “proibiu” o címbalo e o shofar.
Ed 3:10 - címbalo e trombeta. Aqui, Deus “proibiu” o alaúde, harpa e o shofar.

Ao contrário do que Dorneles afirma, a lista não é tão consistente e há sim relevantes alterações entre os textos. Se a teoria do “não está escrito, então está proibido” estiver correta, ela mostra que Deus estava indeciso e não sabia se queria mesmo autorizar ou proibir, afinal..

E se consultássemos os especialistas (salmistas)? A citação de instrumentos na adoração nos Salmos é riquíssima:

Trombetas (Sl 98:6), Shofar (Sl 98:6), Harpa (Sl 43:4; 98:5), Percussão (Sl 81:2; 149:3), Flauta (título do Salmo 5), Alaúde (Sl 71:22), etc.

Se houve de fato uma “proibição” divina ao uso de instrumentos, os salmistas aparentemente desconheciam ou a desobedeceram, pois incentivam o uso de uma gama enorme de instrumentos. É mais correto pensar que tal “proibição divina” a instrumentos de percussão nunca existiu.

Continua...

"Cristãos em busca de êxtase" e a música


O livro "Cristãos em busca de êxtase" (Unaspress) é uma excelente pesquisa histórica e contém informação preciosa nesses dias de explosão neo-pentecostal. No entanto, na parte bíblica do livro há uma argumentação que destoa do bom nível da pesquisa. A análise bíblica que o autor faz da música sacra contém falhas, especialmente ao usar o episódio do transporte da arca como uma revelação normativa para a música cristã. Trechos do livro estão disponíveis na net em forma de artigos e o leitor pode encontrá-los facilmente.

Resumindo a idéia de Dorneles: quando Davi transportou a arca ao som de tambores, tudo deu errado, e Uzá morreu. Quando Davi excluiu os tambores, tudo deu certo. E, segundo ele, após esse episódio, o tambor foi excluído do templo.

Ele escreveu que “o tambor não fazia parte da música do templo, por orientação do próprio Deus a Davi.” E acrescentou que “a exclusão do tambor no templo pode indicar também que esse instrumento (...) deveria estar fora do culto”.

Ele sugere que Deus orientou não ter tambores, ou seja, Deus orientou a “exclusão do tambor” e que por causa dessa orientação divina, tambores deveriam “estar fora do culto” e “sem recomendação”. Apesar de não afirmar claramente que “Deus proibiu os tambores”, há uma “proibição” implícita nos argumentos de Dorneles.

A seguir, algumas observações sobre a argumentação dele.

1) Dorneles coloca erradamente a culpa nos tambores
Fazendo essa contraposição entre “com tambores deu errado” e “sem tambores deu certo”, Dorneles leva os leitores a concluírem exatamente isso: a culpa foi dos tambores. Se ele não teve essa intenção, toda a sua argumentação foi inútil para qualquer outro propósito, visto que ele destaca apenas os tambores e ignora outros elementos da narrativa.

O equívoco de Dorneles aqui é básico: nem a Bíblia nem Ellen White sugerem que o problema do primeiro transporte teve algo a ver com tambores. O problema foi a “violação de um mandado explícito”, foi desobedecer às claras instruções divinas quanto ao transporte da arca (Êx.25:14, Nm.4:15, 7:9 e 10:21).

Nem a Bíblia e nem Ellen White tocam na questão da música ou do uso de instrumentos musicais como sendo a causa da morte de Uzá. Segundo White, “houve uma desatenção direta e indesculpável às determinações do Senhor.” Nada sobre a questão musical.

Ela acrescenta que “o Senhor não podia aceitar o serviço, porque não era efetuado de acordo com Suas orientações”, mas novamente não cita a música. Ela não inclui a música entre a “declaração compreensível da vontade de Deus em todas estas questões” cuja negligência “desonrava a Deus”. E, finalmente, Ellen White afirma que Davi foi “levado a compenetrar-se, como nunca dantes, da santidade da lei de Deus, e da necessidade de obediência estrita”(Patriarcas e Profetas, 705 e 706). De novo, nada sobre a música.

Ao extrair homileticamente uma "lição musical" desse episódio (que é possível), parece que Dorneles viu algo que a Bíblia não mostrou, e que Ellen White também não viu. É um equívoco usar o transporte da arca para reprovar o uso de certos instrumentos musicais, pois a Bíblia simplesmente não diz isso.

2) A argumentação de Dorneles serve para condenar a flauta também.
Curiosamente, podemos substituir “tambor” por “flauta” em quase toda argumentação de Dorneles sem prejuízo para a sua linha de raciocínio e sem ferir os textos bíblicos usados. Veja:

“Na condução da arca de Quiriate-Jearim até a casa de Obede-Edom, houve música com flautas (1Cr 13:8 e 2Sm 6:5). Nessa viagem, tudo deu errado.
“Três meses depois, Davi juntou o povo para buscar a arca da casa de Obede-Edom. Houve alegria, mas ao contrário da primeira tentativa, desta vez a orquestra não teve flautas, mas harpas, alaúdes e címbalos (1Cr 15:16). O transporte deu certo.”

E então? A culpa é dos tambores ou das flautas? E ainda há outros parágrafos:

“A lista dos ‘instrumentos do Senhor’ aparece em diversas ocasiões, sempre sem inclusão das flautas (ver 1Crônicas 25:1 e 6, 16:5, 2Crônicas 5:12 e 13).”
“A música que se fez no transporte da arca até Jerusalém, sem uso de flautas, foi chamada de "música de Deus" (1Crônicas 16:41 e 42), enquanto que a banda que deu o ritmo da dança, quando Uzá morreu, não recebeu essa adjetivação (ver 1Crônicas 13:8).”
“No livro de Isaías, há juízos pronunciados contra pessoas que celebravam festas com embriaguez e música com flautas (ver Isaías 5:12).”

E a conclusão parafraseada também seria: “o textos de Isaías 5:12 e os fatos relacionados com o transporte da arca e com a música do templo deixam esse instrumento sem recomendação.”

Os flautistas precisam ser alertados disso, urgentemente! Mas estranhamente, parece que Dorneles ainda não escreveu nada contra as flautas.

3) A argumentação de Dorneles é favorável à dança
Dorneles divide o transporte da arca em 2 tentativas, destacando dois pontos:
1) a primeira teve dança e tambor, e deu errado.
2) a segunda não teve tambor, e deu certo.

Nas palavras do autor:
"Na condução da arca de Quiriate-Jearim até a casa de Obede-Edom, houve música com tamboris e Davi dançou e se alegrou, ao ritmo da banda (1Crônicas 13:8 e 2Samuel 6:5). Nessa viagem, tudo deu errado."

Mas de acordo com 2 Sm 6:14, Davi dançou na segunda parte do transporte (da casa de Obede-Edom até Jerusalém). Isso compromete o raciocínio do autor. Se na segunda parte a viagem foi abençoada por Deus, então isso coloca a dança de Davi sob a iluminação divina, pois o transporte deu certo.

Dorneles escreveu: "Três meses depois, Davi juntou o povo para buscar a arca da casa de Obede-Edom. Desta vez, ele orientou que ninguém conduziria a arca, senão os levitas (1Samuel 15:2). Houve alegria, mas ao contrário da primeira tentativa, desta vez a orquestra não teve tambor, mas harpas, alaúdes e címbalos (1Crônicas 15:16). O transporte deu certo."

Não teve tambor, mas teve dança. Se o autor vincula o "dar certo" com a ausência de tambores, alguém poderia usar o mesmo argumento e vinculá-lo à presença da dança. Logo, o mesmo argumento que bane o tambor, consegue mais do que pretendia e acaba sacralizando a dança.

Algumas versões da Bíblia não registram “dança” durante o trajeto em que Uzá morreu (de Quireate-Jearim até Obede-Edom) mas usam o verbo “alegrar-se”. Questionado sobre isso, Dorneles responde que o verbo usado na primeira tentativa, em 2 Sm 6:5 (sachaq), pode ser traduzido como “dançar”. Para ele, na primeira tentativa houve tambores e dança (sachaq), e o transporte deu errado.

Mas isso só gera mais problemas para a teoria de Dorneles. Ao ser repreendido por Mical, Davi responde dizendo que faria de novo (2 Sm 6:21), e ele usa a mesma palavra de 2 Sm 6:5 e 1 Cr 13:8 (sachaq).

Resumindo: usando a tradução preferida de Dorneles, Davi “dançou” (sachaq) na primeira tentativa, “dançou” na segunda, e ainda afirmou que “dançaria” (sachaq) de novo:

“Pois eu continuarei a dançar em louvor ao SENHOR”. (2 Sm 6:21) NTLH
“foi perante Senhor que dancei; e perante ele ainda hei de dançar". Almeida Atualizada
yo danzaré ante Yahveh”. Bíblia de Jerusalém (1976)
“therefore I will play, and dance before the Lord.” Septuaginta.

Se nesse episódio houve de fato um “reforma musical” promovida por Davi, parece que o próprio Davi não entendeu direito. Ou então, a ordem de Deus teria sido: “tirem os tambores e comecem a dançar!” De qualquer forma, a argumentação de Dorneles não faz sentido.

Dorneles afirma que “a questão que procurei mostrar no meu texto é a mudança da música do primeiro para o segundo transporte. Essa mudança certamente foi resultado o mandato de Deus a Davi (...)”.

Então, a mudança não foi tanto musical, pois além de Davi dançar e afirmar que continuaria dançando, Ellen White descreve assim o segundo trajeto:

“Outra vez pôs-se em movimento o longo séquito, e a música de harpas e cornetas, trombetas e címbalos, ressoava em direção ao céu, misturada com a melodia de muitas vozes. "E Davi saltava. ... diante do Senhor" (II Sam. 6:14), acompanhando em sua alegria o ritmo do cântico.”

A dança de Davi acompanhava o ritmo. Era “música e dança, em jubiloso louvor a Deus”. Quando artculistas dizem a música do segundo trajeto foi "branda", "suave", "menos ritmada", trata-se de especulação, imaginação e inferência. O fato é que Davi dançou acompanhando o ritmo da música e depois ainda afirmou que continuaria dançando. Isso coloca uma interrogação na teoria da suposta “reforma musical que excluiu os tambores”.

4) A descrição de Dorneles é diferente da descrição de Ellen White
Ellen White não descreve o primeiro transporte da arca em tons negativos como Dorneles o faz. Inclusive quando fala da música.

Sobre a música do segundo transporte da arca, Dorneles diz: “Embora informe que Davi tenha dançado (1Cr 15:29), o cronista repete várias vezes a lista de instrumentos, que não sugere uma música feita para dançar.”

Talvez a música não tenha sido feita para dançar, mas provocou dança, e Davi dançou seguindo o ritmo da música, como diz Ellen White: Davi estava “acompanhando em sua alegria o ritmo do cântico”. Se ele acompanhava o ritmo, o andamento da banda, era porque a música era propícia para isso.

Falando sobre o fatídico 1º trajeto, Ellen White diz: “era seu intuito tornar aquele ato um espetáculo de grande regozijo e imponente manifestação.” Não era uma multidão seguindo um trio elétrico de carnaval. Ellen White diz que “Davi estava radiante de santo zelo.”

Ao contrário de Dorneles, ao falar da música do primeiro transporte, Ellen White não usa expressões negativas. Ela descreve essa música como “cânticos de regozijo, unindo-se melodiosamente uma multidão de vozes com o som de instrumentos músicos”. Era “uma cena de triunfo”, com “alegria solene”(Patriarcas e Profetas, 704). As palavras "melodiosamente" e "solene" devem ser destacadas.

Agora veja como Dorneles faz uma leitura tendenciosamente negativa da música do episódio:
"A música que se fez no transporte da arca até Jerusalém, sem uso de tambores, foi chamada de "música de Deus" (1Crônicas 16:41 e 42), enquanto que a banda que deu o ritmo da dança, quando Uzá morreu, não recebeu essa adjetivação (ver 1Crônicas 13:8)."

No entanto, levando em conta a informação bíblica e de Ellen White, esse parágrafo acima poderia ser reescrito assim:
“A música que deu o ritmo da dança de Davi, sem flautas, foi chamada de “música de Deus” (1Crônicas 16:41 e 42), enquanto que a banda que acompanhou a “cena de triunfo”, "melodiosamente" com “alegria solene”, quando Uzá morreu, não recebeu essa adjetivação (ver 1Crônicas 13:8)."

Esse parágrafo está perfeito, segundo a Bíblia e Ellen White, e tem um tom diametralmente oposto ao que Dorneles escreveu. Percebam como a argumentação de Dorneles é frágil e depende de contorcionismos linguísticos, mensagens nas entrelinhas, jogo de palavras, omissão de trechos (que é o próximo item).

5) Dorneles omite pedaços de textos bíblicos
Além de omitir as flautas em sua argumentação contra os tambores, Dorneles faz citações estranhas, amputadas, para dar uma impressão de que a Bíblia condena apenas os tambores. Por exemplo, ele escreveu:
“No livro de Isaías, há juízos pronunciados contra pessoas que celebravam festas com embriaguez e música com tambores (ver Isaías 5:12 e 24:8 e 9).”

E completa dizendo que “os textos de Isaías 5:12 e 24:8 e 9 e os fatos relacionados com o transporte da arca e com a música do templo deixam esse instrumento sem recomendação.”

O problema é que esses textos também falam de harpas, alaúdes e flautas. Por que extrair cirurgicamente apenas os tambores, dando-lhes uma conotação negativa? Veja os textos bíblicos na íntegra:

Harpas e liras, tamborins, flautas e vinho há em suas festas, mas não se importam com os atos do Senhor, nem atentam para obra que as suas mãos realizam.” (Is 5:12)
“O som festivo dos tamborins foi silenciado, o barulho dos que se alegram parou, a harpa cheia de júbilo está muda. Já não bebem vinho entoando canções; a bebida fermentada é amarga para os que a bebem.” (Is 24:8-9)

Os leitores menos atentos e não-bereanos são induzidos por Dorneles a concluir que Deus está pronunciando juízos apenas contra quem usa tambores, o que não é verdade. A menos que Dorneles também esteja publicando textos contra esses outros instrumentos por aí, o que não é o caso, essa é uma péssima maneira de usar a Bíblia.

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Contra o relativismo



por Luiz Felipe Pondé


O que você faria se estivesse a ponto de assistir a um ritual de antropofagia? Interromperia (sem risco para você)? Ou deixaria acontecer em nome do relativismo cultural (essa ideia que afirma que cada um é cada um, que as culturas devem ser respeitadas em sua individualidade e que não podemos compará-las)?

No primeiro caso, você seria um horroroso descendente dos "jesuítas"; no segundo você seria um relativista chique. Sempre suspeitei que esse papo relativista fosse blablablá. Funciona bem em aula de antropologia, em bares, em parques temáticos e lojas de curiosidades. É evidente que "jesuítas" de todos os tipos fizeram horrores nas Américas. Todo adulto bem educado sabe que é feio condenar cultos à lua ou à chuva. Mas há algo no relativismo cultural que me soa conversa fiada: o relativismo cultural morre na praia quando você é obrigado a conviver com o Outro. E o "Outro" nem sempre é legal.

Se você aceita a antropofagia em nome do respeito à "cultura", aceita implicitamente a ideia de que o valor da vida humana seja subordinado à "cultura". A vida humana não tem valor em si. Todo estudante de antropologia sabe recitar esse credo. Quando confrontado com dilemas como esse, o relativista diz que se trata de uma situação meramente hipotética (hoje não existe mais antropofagia). Mas a verdade é que quando o relativista diz que a antropofagia é hoje quase nula, e, portanto, esse dilema não tem "validade científica", está literalmente correndo do pau porque "alguém" acabou com a antropofagia, não? Por que a antropofagia "acabou"?

Algumas hipóteses: 1) os antropófagos foram mortos por gripes ou em batalhas; 2) foram convertidos pelos horrorosos "jesuítas" e seus descendentes; 3) descobriram formas mais fáceis de comer e rituais que deixam as pessoas (isto é, os Outros) menos irritadas e com menos nojo. É importante conhecer o "lugar" da antropofagia nas religiões dos canibais, mas isso é apenas um "dado" antropológico. Uma descrição de hábitos (ruins). Mas o relativista tem que correr do pau mesmo, porque seu credo funciona bem apenas nas conversas de salão. A vida é sempre pior do que as festas. Relativistas culturais são, no fundo, puritanos disfarçados, gostam de "aquários humanos".

Os seres humanos são culturalmente promíscuos, e "a cultura" sem promiscuidade (trocas, misturas, confusões) só existe nos livros. Use internet, televisão, celulares, aviões e estradas, faça sexo ou guerra, e o papo do relativismo cultural vira piada. Na realidade, as pessoas lançam mão do argumento relativista somente quando lhes interessa defender a "tribo" com a qual ganha dinheiro e fama. O problema com o debate sobre os índios (ou qualquer outra cultura considerada "coitada") é a mitologia que ela provoca. Se, de um lado, alguns falaram dos índios (erradamente) como inferiores, bárbaros ou inúteis, por outro lado, os que "defendem" os índios normalmente caem no mito oposto: eles são legais e só querem viver "sua cultura", e eles não são "capitalistas" como nós, e blablablá. Índios gostam de poder como todo mundo, vide os índios "conscientes de seus direitos" devorando computadores, celulares e internet no Fórum Social, em Belém -ou ficam na idade da pedra mesmo e precisam que o Estado os defenda do mundo.

As culturas mais bem-sucedidas são predadoras e seduzem as mais fracas (ser mais bem-sucedida não implica ser legal). Por que levar medicina científica (invenção dos "opressores") para as aldeias? Não seria contaminação "cultural"? Vamos ou não brincar de "curandeiros"? Que tal abraçar árvores? Se você é católico e quer ser fiel aos seus princípios, você é um retrógrado; se você quer viver no meio da selva (com direitos adquiridos porque você é de uma cultura "coitada"), você é apenas uma tribo com direito a integridade cultural. O conceito de cultura é quase um fetiche do mercado das ciências humanas. Não que não existam culturas, mas o conceito na sua inércia preguiçosa só funciona no laboratório morto da sala de aula ou do museu. A vida se dá de forma muito mais violenta, se misturando, se devorando.

Nada disso é "contra" os índios, mas sim contra o relativismo como ética festiva. O oposto dele não é o obscurantismo, mas a dinâmica da vida real. O relativismo é um (velho) problema filosófico e um "dado" antropológico. Um drama, e não uma solução.


Extraído do Paulopes