terça-feira, 3 de janeiro de 2012

O Salmo 150 e a linguagem figurada



Para fugir das claríssimas afirmações do Salmo 150 quanto ao uso de instrumentos musicais na adoração, tornou-se popular o argumento de que esse salmo é altamente figurativo, e não deve ser levado em conta literalmente.

Como explica Bacchiocchi:
“Por exemplo, não há nenhuma maneira no qual o povo de Deus, na terra, possa louvar o Senhor “no firmamento, obra do seu poder”. O propósito do salmo não é especificar o local e os instrumentos a serem usados para o louvor durante o culto divino, mas sim convidar a tudo o que respira ou emite som a louvar o Senhor em qualquer lugar. O salmista está descrevendo com linguagem altamente figurativa a atitude de louvor que deveria caracterizar o crente a toda hora e em todos os lugares. Interpretar este salmo como uma licença para dançar, ou tocar tambores na igreja, é interpretar de forma errada sua intenção.” (O cristão e a música rock, p. 33)

Os salmos não contém apenas figuras de linguagem.
Apesar de serem altamente figurativos, os salmos apresentam muitas expressões literais, descrições de acontecimentos históricos, referências literais a lugares, pessoas e objetos. Ao contrário do que sugere o argumento de Bacchiocchi, não há nos Salmos um “8 ou 80” com relação às figuras de linguagem. A poesia é uma mistura de expressões figurativas e literais e não um acumulado de sentenças exclusivamente figurativas.

Figura de linguagem é simplesmente uma palavra ou frase usada fora de seu emprego ou sentido original. A figura de linguagem normalmente aparece numa sentença que não faz sentido quando tomada literalmente. Mesmo um leitor com pouco ou nenhum treinamento em literatura poderia dizer quais são os elementos figurativos e os elementos literais numa poesia.

A frase “Essa menina é uma boneca!” é figurativa. Mas a menina é literal, ela existe. O Salmo 1 usa linguagem figurada quando diz que os ímpios “são como a moinha que o vento espalha”(v.4), mas é literal quando adverte que “os ímpios não subsistirão no juízo” (v.5).

Isso demonstra como figuras de linguagem não são o mundo do “faz-de-conta” que Bacchiocchi descreve. Nos Salmos nem tudo é figurativo, existem elementos literais entre as várias figuras de linguagem e tipos de paralelismo.

Por isso, dizer que “a linguagem figurativa desse salmo não permite uma interpretação literal” é um erro grotesco. E esse erro assume proporções gigantescas quando vem de um teólogo tão experiente como era o dr. Samuele Bacchiocchi.

“Adufe” estaria simbolizando o que?
Há um princípio básico de hermenêutica segundo o qual as palavras devem ser entendidas em seu sentido literal, a não ser que tal interpretação leve a uma contradição ou a um absurdo.(Louis Berkhof, Princípios de interpretação bíblica, p. 87-96)

O significado original do texto é distorcido “quando se interpreta figurativamente uma declaração literal e quando se interpreta literalmente uma declaração figurativa.” (Henry A. Virkler, Hermenêutica Avançada, p. 19.)

Assim, aplicando esse princípio básico no Salmo 150, fica claro que a expressão: “Louvai-o com adufes” não precisa ser entendida como uma figura de linguagem. Ela faz sentido literalmente, pois os hebreus usavam adufes na adoração. Essa é a leitura mais natural do texto.

Aqueles que entendem os “adufes” do Salmo 150 como uma figura de linguagem devem dizer que figura de linguagem é essa. Símile? Metáfora? Alegoria? Além disso, os adeptos da interpretação figurativa dos adufes devem explicar em linguagem literal o que o texto supostamente estaria sugerindo de maneira figurada. O que significa “louvai com adufes”?

Incrivelmente, a resposta para esses “hermeneutas” geralmente é: “Louvai com adufes significa: NÃO usem percussão!”

Que figura de linguagem é essa onde o sentido literal é o oposto do sentido figurado? Ironia? Estariam esses intérpretes sugerindo que o Salmo 150 é um salmo irônico, sarcástico?

Figura de linguagem inadequada?
Ainda que “louvai-o com adufes” fosse figurativo, na ótica de Bacchiocchi essa seria uma figura de linguagem inadequada, pois para ele os adufes não podem ser usados na adoração. Isso nos leva a um fato curioso: o Espírito Santo inspirou o salmista e o levou a usar um elemento pecaminoso como figura de linguagem!

É como se o salmista tivesse escrito ao Senhor que “o teu amor é melhor que um pernil suíno!”, ou “minha alma suspira por ti mais do que o viciado anseia pela cocaína”. Um absurdo, ainda que fosse meramente simbólico.

Como o próprio Bacchiocchi destaca, os salmos usam expressões claramente figurativas, ordenando o louvor “no leito”, “portando espadas”, ou “no firmamento”, mas nenhuma dessas expressões é pecaminosa ou errada, como supostamente seria o “louvai-o com adufes” caso Bacchiocchi estivesse certo. Essa teoria pode ser resumida assim: no Salmo 150 Deus usa figuras de linguagem que fazem apologia ao pecado e que significam exatamente o contrário do que Ele queria dizer.

Devemos “tomar cuidado para não colocar demais exegese nos Salmos, a ponto de achar significados especiais em toda palavra ou frase, onde o poeta talvez não tenha objetivado nenhum.” (Gordon D. Fee e Douglas Stuart, Entendes o que lês? Um guia para entender a Bíblia com o auxílio da exegese e da hermenêutica, p. 177)

Bacchiocchi e sua hermenêutica por conveniência
Para vermos a incoerência metodológica de Bacchiocchi, basta compararmos a pesquisa que ele fez sobre a música com as pesquisas que ele fez sobre outros assuntos. Os métodos e abordagens são diferentes.
Apesar de defender essa leitura figurativa dos Salmos 149 e 150 em “O cristão e a música rock”, em seu livro “Imortalidade ou ressurreição?” (Unaspress, 2007), Bacchiocchi consegue separar claramente o que é figurativo e o que é literal nos salmos (e ele cita muitos salmos).

Por exemplo, quando o Salmo 6:5 diz que na morte não há lembrança do Senhor, Bacchiocchi entende isso literalmente. Quando o Salmo 115:17 diz que os mortos não louvam ao Senhor, Bacchiocchi entende isso literalmente. O fato dos salmos terem sido escritos em linguagem poética não impede interpretações literais de trechos que são claramente literais.

Ao pesquisar sobre a morte, Bacchiocchi consegue distinguir o que é figurativo e o que é literal nos salmos. Aparentemente, ele só não consegue fazer isso quando a discussão é sobre música: nesse caso, tudo é figurativo!

Outro exemplo da “hermenêutica por conveniência” de Bacchiocchi está no fato de ele desrespeitar uma regra básica que ele mesmo destaca em “Imortalidade ou ressurreição?”:

“Para encontrar respostas a essas indagações, tomaremos as Escrituras a fim de examinar todas as passagens pertinentes. (...) Deve-se sempre permitir às Escrituras interpretarem as Escrituras. Passagens que apresentam certos problemas devem ser interpretadas à luz daquelas que são claras. Seguindo tal princípio, conhecido como analogia da fé, podemos resolver as aparentes contradições que encontramos na Bíblia.” (p. 114)

Bacchiocchi ignorou a regra “texto claro interpreta texto obscuro” - Ele dá preferência a uma lista de instrumentos para inferir, imaginar, uma suposta proibição divina à flauta e aos tambores. Ele usa essa inferência para reinterpretar textos claros como os salmos 149 e 150. É uma incrível desobediência à regra hermenêutica.

Bacchiocchi desrespeita a regra “a Bíblia interpreta a Bíblia” – Ao afirmar que as flautas e os tambores ficaram de fora do templo por estarem "associados ao culto pagão”, ele não encontra nenhum apoio bíblico. A Bíblia não afirma isso em lugar algum, e os salmos continuam incentivando claramente o uso de flautas e tambores.

Bacchiocchi não leva em consideração “todas as passagens pertinentes” - A Bíblia tem outras passagens sobre o “estar associado ao paganismo” que foram sumariamente ignoradas em sua pesquisa, como:
- Pagãos usavam, dentre outros instrumentos, harpas e alaúdes (Is 14:11; Ez 26:13; Dn 3:5; Jó 21:12;)
- Incrédulos e bêbados infiéis usavam harpas, dentre outros instrumentos (Is 5:12)
- Prostitutas usavam harpas (Is 23:16)
- Um descendente de Caim é chamado de “pai dos que tocam harpa e flauta” (Gn 4:21).
- A maldição divina sobre a Babilônia mística do Apocalipse inclui menções à harpa, à flauta e aos clarins (Ap 18:22)
Esses instrumentos estão associados ao paganismo mas fazem parte da lista de “instrumentos do Senhor”. Isso torna insustentável a argumentação de Bacchiocchi.

E a dança?
Sempre que se discute o uso de instrumentos musicais no Salmo 150 surge a pergunta: “E a dança? Você está defendendo o uso da dança também?” Não. Eu estou defendendo o uso correto da Palavra de Deus.

Eu nunca entendi a preocupação com a dança. Não temos medo do véu (uma ordem bíblica para as mulheres), mas temos medo da dança. Não temos problema nenhum com as leis bíblicas sobre barba e cabelo, mas trememos diante da dança.

Alguns temem tanto que sugerem que a palavra “dança” não é dança, é “órgão”, ou outro instrumento musical desconhecido. Pode até ser, mas o peso da evidência está a favor da palavra “dança”: é uma tradução linguisticamente correta, e os hebreus dançavam em celebrações religiosas.

Se os adventistas não acham adequadas as manifestações físicas, podem argumentar de maneira diferente, usando a lógica, respeitando as regras de interpretação e sem alterar o texto bíblico. Fazemos isso facilmente com outros assuntos, podemos continuar fazendo no assunto da dança. Só não podemos seguir o “método Bacchiocchi” de fazer exegese com dois pesos e duas medidas.

Conclusão
Vimos quão frágil é o argumento da “linguagem figurada”. Eu não sei o que levou um teólogo tão celebrado a publicar uma obra com argumentos tão fracos como esse. Não sei o que concluir nesse ponto...

3 comentários:

  1. Irmã, gostei do seu comentário. Mas fiquei com uma dúvia: Se o salmo 150 é literal, porque ainda não estamos trazendo as galinhas, ratos, morcegos e porcos para a igreja para adorar? No salmo 150 está escrito tudo o que tem fôlego, devemos entender que só os humanos se incluem nesta categoria? ou será que aqui já não está falando do santuário? Poderia explicar?

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  2. Vitor, como escrevi, "mesmo um leitor com pouco ou nenhum treinamento em literatura poderia dizer quais são os elementos figurativos e os elementos literais numa poesia."

    Escrevi um testamento afirmando que o Salmo não é só literal ou só simbolismo poético e tu me fazes uma pergunta dessas... E ainda começa com "se o salmo 150 é literal".

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  3. quem é vc Vanessa?
    qual sua formação no grau teológico e de interpretação bíblica?
    Outra coisa
    Ellen White diz que espírito é Caráter,
    Sendo assim
    MELODIA responde ao "espírito" (Caráter)
    HARMONIA responde à MENTE (intelecto)
    RITMO responde ao CORPO (reação física)
    Qual é a sua graduação Científica pra questionar alguém que passou anos analisando a mente humana ?
    o que vc ganha desabafando sua não concordância com o autor Bacchiocchi?
    no seu ponto de vista, este é um assunto de salvação?
    Reformulando a pergunta: no seu ponto de vista, as pessoas que não ouvem o mesmo estilo de musica que vc podem se perder por este fato?
    Se não, por que tamanha indignação?
    eu entendo o lado dos conservadores, pois pra eles este é um caso serio de adoração e de acordo com o ponto de vista deles, Deus pode não se agradar com as musicas que Vcs costumam levar ao templo. Por isto eles levam tão a serio este assunto de estilo musical. Já vcs creio eu, não acreditam que o estilo musical deles esteja em desacordo com a vontade de Deus. Portanto se pra vcs não é um caso de salvação por que se impor ao lado deles?
    Não seria mais fácil, para não escandalizar os irmãos, simplesmente não levar ao templo estas musicas (na opinião deles) duvidosas! Cito aqui um exemplo de Paulo que poucos de nos estaríamos dispostos a repetir.
    1Co 8:13 Por isso, se a comida escandalizar a meu irmão, nunca mais comerei carne, para que meu irmão não se escandalize.
    Mas ao invés de fazê-lo, não nos preocupamos se vamos machucar o pensamento de alguém ou a reputação de alguém, simplesmente “damos o troco”. E ela que se escandalize pois eu estou certo e ponto.
    Eu não sou exemplo a ninguém, mas eu mesmo já tive uma posição bem conservadora, como já tiver uma posição bem contemporânea, porem só via guerra dentro da igreja quanto a este assunto, hoje eu ouço em meu fone de ouvido as musicas que mais gosto, porém eu canto na igreja, e só escolho musicas sem bateria e afins, e não me sinto nem um pouco incomodado com isto, nem acho impossível ou terrível e espantoso cantar musicas que nossos pais da fé ouviam.
    Espero sinceramente que vc irmã Vanessa, e aqueles que possuem a mesma opinião que vc, lembrem-se quando sujamos alguém, nós também ficamos com as mãos sujas.
    Deus lhe abençoe e te ajude a tomar a melhor decisão.

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